quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Inconstância


Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer…
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando…

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também… nem eu sei quando…
(Florbela Espanca)

"O Primo Basílio"


"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!
Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma certa tranqüilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao espelho."
(Eça de Queiroz, "O Primo Basílio")

Não sei quantas almas tenho.


Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem acabei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,


Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem;

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.


Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser.

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo : "Fui eu?"

Deus sabe, porque o escreveu.
(Fernando Pessoa)

Parte


Uma parte de mim é todo mundo
Outra parte é ninguém
Fundo sem fundo
Uma parte de mim é multidão
Outra parte estranheza e solidão


Uma parte de mim, pesa
Pondera
Outra parte, delira
Uma parte de mim almoça e janta
Outra parte se espanta
Uma parte de mim é permanente
Outra parte se sabe de repente
Uma parte de mim é só vertigem
Outra parte, linguagem
Traduzir uma parte noutra parte
Que é uma questão de vida ou morte
Será arte?
(Fagner / Ferreira Gullar)

Pequena Folha


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.
(Pablo Neruda)

O meu amor

"O meu amor honra-me com prendas e eu nada tenho para lhe dar. Talvez a Lua. Afaga-me o cabelo e enche-o de nuvens e eu só lhe posso retribuir com raios de sol. Debruça-me sobre um manto fresco de ervas e brinca com as minhas orelhas. Dou-lhe, em segredo, um sorriso, a que ele, logo, acode com uma cascata líquida de risos cristalinos. À noite desculpa-se por não ter outras prendas para demonstrar-me o seu verdadeiro amor. É nesse momento que, então, envergonhada por ter menos do que ele, aproveito o escuro do quarto e lhe pouso, devagar, sobre a almofada, uma pétala, ainda viva, perfumada, duma flor."

José António Gonçalves

Asas


"Mesmo que voes, um dia perderá as asas.
Isso mostra o quanto és frágil. Mas, enquanto voas, pode ir aonde queres.
Isso mostra o quanto és livre."
(Kitsune Faherya)

Adeus


Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.


Alexandre O'Neill in "Um adeus português"

Quero Acreditar


Quero acreditar que vale a pena,
Viver e amar e lutar por
Chegar ao fim com sentido
Do amor profundo;
Por uma flor, por um amor,
Por uma mulher, por um homem,
Por um pai, por um mundo,
Por um ideal.
(Prefácio, in «Os Ditos Normais», de Jorge Oliveira)

Tempo

Quanto tempo eu perdi?
Quantas vezes me prendi?
Quantas horas já morreram,
já passaram, que eu sofri,
que me mataram?

Sempre na hora.
Na hora H,
ou mesmo fora de hora.

Os novos tempos, ou os de outrora,
Já foram embora.
Talvez agora, lá fora,
junto ao tempo da saudade,
ou do esquecimento, velhos tempos.
Junto ao muro da velhice,
é o tempo.

Talvez quem sabe o momento,
O vento, o pensamento,
O tempo, o tempo.

- Implacável me espera -
(Electra N. Barbabela)

Eu!? -

Eu!? -
Nasci, regalei os únicos olhos.
eu hesitei.
hesito.
não sou eu.
isso não sou.
insisto.
sou isso.
eu vou.
as-as na porta do céu.
não fui o bastante?
o bastante fui eu.
suplico.
um tempo ao tempo,
sangro no copo,
eu bebo. e atento.
te beijo, me quer?
que sono.
me inspire.
respire. me.
implico,
sou o que te falta,
sou a falta,
a sua falha,
o sapato; furado,
sou o tudo,
impecável,
perca o receio,
me ame denovo,
em pleno recreio,
sou o nada e o gigante na fechadura da sua porta.
*Mariana de Matos*

Dá-me a tua mão:


Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.
(Clarice Lispector)